No primeiro piso do prédio onde ficava o escritório de advocacia de Melchior
perfilavam algumas lojas dos mais diferentes ramos. Ali era possível
encontrar de salão de beleza a lojas de semi-joias, confecções e
calçados. Num desses pontos trabalhava Dália, uma morena vaidosa, busto
firme, cintura bem delineada e as pernas mais bonitas daquele pedaço de
rua. O espetáculo não era maior porque ela usava roupas formais, sem
decotes. Para cada dia tinha um diferente terninho comportado, mas
insuficientes para esconder a curvilínea silhueta. Na verdade o efeito
era contrário: instigava ainda mais as mentes poluídas.
Mas o que ela tinha de mais desconcertante era o olhar.
- Esta mulher é a encarnação da Capitu – disse Melchior, certa vez, ao seu amigo Manolo. – Ela tem o olhar oblíquo!
- Olhar de ressaca, é o que você está querendo dizer, meu amigo –
corrigiu o outro ao perceber que Melchior referia-se à personagem
machadiana do
romance
Dom Casmurro.
- Oblíquo ou de ressaca, seja lá o que for. Eu só sei que ela tem
um olharzinho recatado e ao mesmo tempo malicioso… Ela olha com um jeito
tímido, mas provocante.
- Uma safadinha, é o que você insinua! – definiu Manolo
- Isso. Isso aí. É isso que ela esconde por trás de tanto recato – concluiu Melchior.
- Mas eu acho que você está errado. Conheço essa menina. Saiu ano
passado do convento. Ia ser freira, mas preferiu voltar para casa.
- Freira? Ia ser freira? Humm! E porque a belezura desistiu de ser esposa de
Jesus
?
- Não seja maledicente! Já lhe disse que essa moça é um poço de
virtudes. Mesmo tendo renunciado o convento continua servindo à Igreja. É
orientadora nos cursilhos, ensina o catecismo às criancinhas todos os
sábados e é a voz mais linda do coral da catedral – defendeu Manolo.
- Humm! Eu sei. Mas o olhar dela me desconcerta. Definitivamente
não é a candura de um anjinho que ela transmite no brilho esfuziante das
suas pupilas.
- Cara, não fala assim da menina – Pediu Manolo. – Olha, eu vou te
falar uma coisa: Essa moça é minha afilhada. Não fala assim dela. Puta
que pariu! Como você é pervertido. Pensar horrores de uma moça tão…
- Pô! Cara, desculpas. Quem não sabe é como quem não vê. Eu não
sabia que ela era tua afilhada. Mas também, quem manda ter uma afilhada
tão…
- Cala a boca! – Mandou Manolo, ficando vermelho de raiva.
- Que é isso, homem? Você não é de perder a esportividade! – estranhou o outro.
Manolo, que também estava recostado no parapeito, saiu bufando e
foi para sua mesa de trabalho e naquela tarde não quis mais conversa com
Melchior. Mas na cabeça dele pululavam todos aqueles termos
qualificativos dirigidos à sua afilhada. “Safadinha”, “olhar oblíquo”,
“olhos de ressaca”, enfim, uma nova Capitu. Nunca havia olhado para
Dália com estes olhos. Lampejavam agora na sua mente cenas calientes
da garota, mas resistia. Tentava a todo custo ter outros pensamentos
que não fossem profanos. Lembrou o quanto ele e seu compadre Olivaldo
eram amigos e se estimavam. Esperou que a nobreza destes pensamentos
varresse a sujeira que enodoavam a imagem que tinha da menina. “Seu
olhar era mesmo dissimulado? Será que ela escondia detrás dos olhos o
furacão libidinoso sugerido por Melchior?”, perguntou-se.
Era sexta-feira. Manolo foi para casa com a cabeça poluída,
entupida de ideias prevaricadoras. Não conseguiu dormir naquela noite.
….
Corre pela boca do povo que quando o Satanás não vai,
manda o secretário. Uma destas duas coisas aconteceu na tarde do dia
seguinte, um sábado, em que o centro da cidade estava mais vazio que o
Saara. Manolo precisou de uma petição que só poderia ser encontrada no hard disc do seu computador, no escritório, e para lá se dirigiu.
Viu que o carro de Melchior estava estacionado. Tentou
imaginar o que o sócio estaria fazendo àquela hora no escritório. Subiu
um pequeno lance de escadas e logo se viu diante da porta. Nenhum mínimo
reflexo de lâmpada acesa. Abriu a porta, entrou e ligou a luz.
– Que diabo é isso? – Pensou consigo, assustado ao ver
paramentos de freira em cima do sofá da recepção. À esquerda uma
calcinha branca, largada ao acaso. – Mas que putaria é essa?
Perguntou-se, novamente.
Abriu a porta do escritório e foi tomado por um súbito
torpor. Não conseguia processar aquilo tudo. Uma inacreditável cena de
sexo em meio a códigos e vade-mécuns. Divisou uma moça morena totalmente
despida, mas com capuz de freira na cabeça. Gritou:
– O que é isso?
Os dois devassos olharam para a porta.
– Dália!!! Melchior!!! – gritou Manolo
Melchior era o mesmo que sempre dizia com despudorado moralismo: “Local em que se ganha o pão não se come carne”.
…
F. Carvalho, jornalista, professor, contista e acadêmico de Direito
http://a24horas.com/politica/piaui/cronica-de-f-carvalho-o-olhar-obliquo-da-quase-freira/
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