sexta-feira, 31 de maio de 2013

Conto de F. Carvalho: O olhar oblíquo da quase-freira

No primeiro piso do prédio onde ficava o escritório de advocacia de Melchior perfilavam algumas lojas dos mais diferentes ramos. Ali era possível encontrar de salão de beleza a lojas de semi-joias, confecções e calçados.  Num desses pontos trabalhava Dália, uma morena vaidosa, busto firme, cintura bem delineada e as pernas mais bonitas daquele pedaço de rua. O espetáculo não era maior porque ela usava roupas formais, sem decotes. Para cada dia tinha um diferente terninho comportado, mas insuficientes para esconder a curvilínea silhueta. Na verdade o efeito era contrário: instigava ainda mais as mentes poluídas.
Mas o que ela tinha de mais desconcertante era o olhar.
- Esta mulher é a encarnação da Capitu – disse Melchior, certa vez, ao seu amigo Manolo.  – Ela tem o olhar oblíquo!
- Olhar de ressaca, é o que você está querendo dizer, meu amigo – corrigiu o outro ao perceber que Melchior referia-se à personagem machadiana do
romance
Dom Casmurro.
- Oblíquo ou de ressaca,  seja lá o que for. Eu só sei que ela tem um olharzinho recatado e ao mesmo tempo malicioso… Ela olha com um jeito tímido, mas provocante.
- Uma safadinha, é o que você insinua! – definiu Manolo
- Isso. Isso aí. É isso que ela esconde por trás de tanto recato – concluiu Melchior.
- Mas eu acho que você está errado. Conheço essa menina. Saiu ano passado do convento. Ia ser freira, mas preferiu voltar para casa.
- Freira? Ia ser freira? Humm! E porque a belezura desistiu de ser esposa de
Jesus
?
- Não seja maledicente! Já lhe disse que essa moça é um poço de virtudes. Mesmo tendo renunciado o convento continua servindo à Igreja. É orientadora nos cursilhos, ensina o catecismo às criancinhas todos os sábados e é a voz mais linda do coral da catedral – defendeu Manolo.
- Humm! Eu sei. Mas o olhar dela me desconcerta. Definitivamente não é a candura de um anjinho que ela transmite no brilho esfuziante das suas pupilas.
- Cara, não fala assim da menina – Pediu Manolo. – Olha, eu vou te falar uma coisa: Essa moça é minha afilhada. Não fala assim dela. Puta que pariu! Como você é pervertido. Pensar horrores de uma moça tão…
- Pô! Cara, desculpas. Quem não sabe é como quem não vê. Eu não sabia que ela era tua afilhada. Mas também, quem manda ter uma afilhada tão…
- Cala a boca! – Mandou Manolo, ficando vermelho de raiva.
- Que é isso, homem? Você não é de perder a esportividade! – estranhou o outro.
Manolo, que também estava recostado no parapeito, saiu bufando e foi para sua mesa de trabalho e naquela tarde não quis mais conversa com Melchior. Mas na cabeça dele pululavam todos aqueles termos qualificativos dirigidos à sua afilhada. “Safadinha”, “olhar oblíquo”, “olhos de ressaca”, enfim, uma nova Capitu. Nunca havia olhado para Dália com estes olhos. Lampejavam agora na sua mente cenas calientes da garota, mas resistia. Tentava a todo custo ter outros pensamentos que não fossem profanos. Lembrou o quanto ele e seu compadre Olivaldo eram amigos e se estimavam. Esperou que a nobreza destes pensamentos varresse a sujeira que enodoavam a imagem que tinha da menina. “Seu olhar era mesmo dissimulado? Será que ela escondia detrás dos olhos o furacão libidinoso sugerido por Melchior?”, perguntou-se.
Era sexta-feira. Manolo foi para casa com a cabeça poluída, entupida de ideias prevaricadoras.  Não conseguiu dormir naquela noite.
….
            Corre pela boca do povo que quando o Satanás não vai, manda o secretário.  Uma destas duas coisas aconteceu na tarde do dia seguinte, um sábado, em que o centro da cidade estava mais vazio que o Saara.  Manolo precisou de uma petição que só poderia ser encontrada no hard disc do seu computador, no escritório, e para lá se dirigiu.
            Viu que o carro de Melchior estava estacionado. Tentou imaginar o que o sócio estaria fazendo àquela hora no escritório. Subiu um pequeno lance de escadas e logo se viu diante da porta. Nenhum mínimo reflexo de lâmpada acesa. Abriu a porta, entrou e ligou a luz.
            – Que diabo é isso? – Pensou consigo, assustado ao ver paramentos de freira em cima do sofá da recepção.  À esquerda uma calcinha branca, largada ao acaso. – Mas que putaria é essa? Perguntou-se, novamente.
            Abriu a porta do escritório e foi tomado por um súbito torpor. Não conseguia processar aquilo tudo. Uma inacreditável cena de sexo em meio a códigos e vade-mécuns. Divisou uma moça morena totalmente despida, mas com capuz de freira na cabeça. Gritou:
            – O que é isso?
            Os dois devassos olharam para a porta.
            – Dália!!! Melchior!!! – gritou Manolo
Melchior era o mesmo que sempre dizia com despudorado moralismo: “Local em que se ganha o pão não se come carne”.
F. Carvalho, jornalista, professor, contista e acadêmico de Direito
http://a24horas.com/politica/piaui/cronica-de-f-carvalho-o-olhar-obliquo-da-quase-freira/

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